INTRODUÇÃO
A Nova Lei de Licitações – Lei Federal n. 14.133, de 01 de abril de 2021, trouxe para o universo das contratações públicas a positivação de um princípio que, desde sempre, foi considerado como mandatório em um processo administrativo no bojo do qual alguns atos representam situações concretas de risco à probidade da licitação e da respectiva contratação: estamos a falar do princípio da segregação de funções.
O princípio da segregação de funções pressupõe a repartição de diversas funções entre agentes distintos, de forma que “nenhum servidor deve ser responsável pelos passos chave de determinada transação no âmbito da gestão pública”.
Na Nova Lei de Licitações, o §1o do art. 7º estabelece como dever categórico da autoridade máxima do órgão ou entidade responsável pela licitação o cumprimento do princípio da segregação de funções,
“...vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação”.
Nesse sentido, o princípio da segregação de funções tem como finalidade evitar oportunidades que permitam a qualquer agente público incidir em erros, ocultar tais erros ou cometer fraudes no curso normal das suas funções no âmbito do processo licitatório¹. Em suma, o princípio da segregação de funções, ao estabelecer a necessidade de divisão de tarefas entre os diversos atores da licitação, busca cumprir dois objetivos distintos:
- Mitigar o risco de ocorrência de fraudes, desvios de finalidades e atos de corrupção;
- Evitar a ocorrência de erros que possam comprometer a obtenção de proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração, na medida em que induz à especialização e à profissionalização das funções públicas;
Para a exata compreensão da importância deste princípio no âmbito das contratações pública, é essencial delimitar melhor a sua caracterização.
O PRINCÍPIO DA SEGREGAÇÃO DE FUNÇÕES NA DOUTRINA ESPECIALIZADA E NA JURISPRUDÊNCIA DO TCU
Na recente obra de Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. SP:RT, 2021, 1ª ed. P. 128-129 e 198), encontramos as seguintes referências quanto ao princípio da segregação de funções:
“Implica a vedação à concentração de atribuições em um único sujeito e a exigência do fracionamento do exercício de um poder decisório entre uma multiplicidade de agentes estatais.” (p. 128)
“A segregação de funções é aplicável sempre que a atividade administrativa apresentar aspectos qualitativamente distintos.” (p. 129)
“É necessário reconhecer que os riscos envolvidos nessas espécies de atuações exigem que os serviços estatais sejam organizados de modo a reduzir práticas reprováveis, observando procedimentos norteados pela transparência e pela publicidade.” (p. 129)
“A segregação de funções tende a ser uma decorrência da gestão por competências. A acumulação de atribuições diversas produz o risco de um sujeito assumir funções para as quais não está qualificado – partindo do pressuposto de que cada função específica exige conhecimentos habilidades e atitudes diferenciadas.” (p. 198)
Da jurisprudência do Tribunal de Contas da União, e das manifestações da Controladoria Geral da União colhem-se algumas referências sobre a dimensão desse princípio:
Determinar (...) que observe em suas unidades gestoras o princípio de segregação de funções que consiste na separação de funções de autorização, aprovação, execução, controle e contabilização das operações, evitando o acúmulo de funções por parte de um mesmo servidor. (Acórdão TCU 5.615/2008)
...promova a segregação de funções, quando da realização dos processos de aquisição de bens e serviços, em observância às boas práticas administrativas e ao fortalecimento de seus controles internos, de forma a evitar que a pessoa responsável pela solicitação participe da condução do processo licitatório, integrando comissões de licitações ou equipes de apoio nos pregões. (Acórdão TCU 747/2013)
Não designar, para compor comissão de licitação, o servidor ocupante de cargo com atuação na fase interna do procedimento licitatório. (Acórdão TCU nº 686/2011 – Plenário)
Considera-se falta de segregação de funções, o Chefe do Setor de Licitações e Contratos elaborar o projeto básico e atuar no processo como Pregoeiro. (CGU, relatório RELATÓRIO nº 174805/2005)
Considera-se falta de segregação de funções quando o pregoeiro e a equipe de apoio à licitação realizam trabalho de comissão de recebimento dos materiais. (CGU, relatório RELATÓRIO nº 174805/2005)
Magno Antônio da Silva sintetiza com maestria a relevância do princípio da segregação de funções:
Destas condutas e procedimentos, sobressaem inúmeras vantagens que se materializam vis-à-vis ao princípio da segregação de funções, entre elas, o aumento do controle administrativo sobre cada fase ou subfase processual, a divisão das tarefas com a respectiva especialização e ganhos de produtividade, a minimização dos conflitos de interesses, riscos de erros, omissões, fraudes ou corrupção e a maior transparência e eficiência das ações realizadas. (O princípio da segregação de funções e sua aplicação no controle processual das despesas: uma abordagem analítica pela ótica das licitações públicas e das contratações administrativas. (Revista do TCU n. 128, set/dez 2013, p. 38 a 51)
O supracitado autor aponta também as consequências de correntes de sua aplicação:
...pode-se compreender que a separação de funções tem como consequência imediata e direta: a) a especialização pela divisão de tarefas, seguida de expansão da produtividade dos recursos humanos (efeito secundário); b) o surgimento da fiscalização reversa com ingerência sistemática na qual se ameniza o problema do conflito de interesses; e c) a mitigação de riscos de omissões, erros, fraudes e corrupção com restrições às incidências de atos antieconômicos.
De acordo com as diretrizes para as Normas do Controle Interno do Setor Público da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores - INTOSAI (2007, p. 45-46), a segregação de funções configura-se com o propósito de “reduzir o risco de erro, desperdício ou procedimentos incorretos e o risco de não detectar tais problemas”. Ainda, segundo a INTOSAI (2007, p. 46):
não deve haver apenas uma pessoa ou equipe que controle todas as etapas-chave de uma transação ou evento. As obrigações e responsabilidades devem estar sistematicamente atribuídas a um certo número de indivíduos, para assegurar a realização de revisões e avaliações efetivas.
A LÓGICA DO PRINCÍPIO DA SEGREGAÇÃO DE FUNÇÕES
A aplicação do princípio da segregação de funções aos processos de trabalho faz com que um servidor/unidade administrativa sempre verifique o trabalho de servidor/unidade administrativa distinto que o antecedeu na execução de uma função, evitando, assim, que eventual erro possa contaminar todo o processo, permitindo, dessa forma, a tomada de medidas tempestivas de correção. Essa forma de trabalho cria um processo contínuo de controles preventivos, a provocar permanente restrição aos possíveis desvios ético-comportamentais.
Nas palavras de Magno Antônio da Silva (ob. cit),
Ao apartar as funções e não facultar que um único servidor seja responsável pleno por todas as fases ou estágios mais críticos (sensíveis) da execução das despesas, cria-se, metaforicamente, um ambiente hígido de “policiamento” ostensivo-dissuasório no qual as tarefas executadas por um agente público são subsequentemente acompanhadas e fiscalizadas por outro, inibindo condutas ilícitas e/ou antieconômicas.
Além de inibir condutas reprováveis e conflitos de interesses, a segregação de funções induz à especialização de tarefas e alivia a sobrecarga de serviços em determinados agentes públicos, com evidentes ganhos de eficiência e produtividade no desempenho das rotinas atinentes aos processos licitatórios.
Pelo princípio da segregação de funções, elimina-se a figura do servidor conhecido como o “faz tudo”, que muitas vezes não faz nada bem feito e que se vale do acúmulo eventual ou mesmo proposital de tarefas para justificar os erros cometidos, prazos descumpridos ou ainda, que se vê extenuado pelo excesso de atribuições. Isso porque cada um dos agentes públicos deve responsabilizar-se pela qualidade dos serviços que lhe incumbem, uma vez que, num processo em que resta bem definido “quem faz o quê”, não há espaço para a omissão de tarefas e nem para assunção de competências alheias, permitindo, assim, o controle dos limites das responsabilidades individuais.
Com a clareza sobre as atribuições de cada setor, além de permitir uma melhor divisão de tarefas, é natural que o servidor se sinta estimulado a dar um retorno mais qualificado para a Administração.
Por fim, ao se estabelecer a regra da verificação subsequente de atos praticados por cada um dos agentes públicos, cria-se um ambiente de colaboração e de comunhão de interesses na busca da realização do interesse público, já que nenhum servidor conseguirá satisfatoriamente executar suas funções caso o ato antecedente tenha alguma falha ou erro, cuja presença lhe caberá identificar e acionar o responsável por sua correção.
AS FUNÇÕES SEGREGÁVEIS NO ÂMBITO DE UM PROCESSO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Para uma visão mais pragmática da aplicação da segregação de funções no âmbito de um processo licitatório, propomos uma divisão sintética das principais funções, conforme figura abaixo:
A divisão acima contempla as funções essenciais² presentes em uma contratação pública. A separação proposta leva em consideração a necessidade de se evitar a concentração de tarefas técnicas e/ou decisórias nas mãos de um mesmo agente público/unidade administrativa, bem como estabelece setores/agentes específicos para desempenharem as funções mais sujeitas a riscos de fraudes e corrupção, que na figura esquemática estão identificadas como “estimativa do valor da contratação” (operacionalizada pela realização de cotações de preços), “elaboração do edital”, “condução do certame” e “fiscalização e acompanhamento da execução contratual”.
A segregação de funções será operacionalizada não só a partir de critérios vinculados a atribuições legais e competências técnicas, mas também avaliando os riscos inerentes às diversas ações que são executadas para o fim de se obter o atendimento a uma necessidade pública³.
Não se nega que em algumas entidades a exiguidade do número de servidores se constitui em fator impeditivo ao cumprimento integral do princípio da segregação de funções. Por isso, é essencial a gestão de riscos4 , a fim de identificar, analisar e tratar incidentes com maior potencial de lesividade. Neste contexto, sugere-se, por exemplo, a acumulação de atribuições não subsequentes, ou que representem menor risco à ocultação de erros ou fraudes. De qualquer maneira, impõe-se, no caso concreto, o conhecimento da realidade de cada entidade, para identificar as atividades que não podem ser desempenhadas por um mesmo agente.
CONCLUSÃO
Um dos princípios que informa as contratações públicas na Nova Lei de Licitações, a segregação de funções significa a separação de atribuições entre os distintos servidores que atuam nas várias fases do processo licitatório.
Essa separação de funções objetiva evitar a ocorrência de fraudes, desvios de finalidades e atos de corrupção, bem como o cometimento de erros que possam comprometer a obtenção de proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração, consubstanciando-se em uma eficaz ferramenta de controle preventivo e de aprimoramento técnico das funções administrativas.
Em entidades menores, com poucos servidores, a segregação de funções deve ser realizada a partir de uma análise circunstanciada de riscos, cujo resultado deve considerar a possibilidade de acumulação de ações cuja execução pelo mesmo ator não represente risco relevante ao cumprimento dos seus objetivos institucionais e de seus deveres legais.
Segregar não importa em estabelecer atuações isoladas ou dissociadas entre si. O fato de todas as ações serem objeto de verificação subsequente estabelece um fluxo de comunicação entre os diversos agentes envolvidos no processo licitatório, de maneira a criar um ambiente de colaboração e de comunhão de interesses na busca da realização do interesse público,
¹Sobre o conceito de erro e fraude, a intenção é um elemento importante para diferenciá-los. Fraude é “qualquer ato ou omissão intencional concebido para enganar os outros, resultando em perdas para a vítima e/ou em ganho para o autor” (Managing the business risk of fraud: a practical guide, THE INSTITUTE OF INTERNAL AUDITORS, 2008). O erro, ainda que possua grande potencial de prejuízo, não ocorre propositalmente. Por sua vez, a fraude também pode ocorrer por omissão. Para maiores esclarecimentos, vide: Brasil. Tribunal de Contas da União. Referencial de combate a fraude e corrupção: aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública / Tribunal de Contas da União. – Brasília: TCU, Coordenação-Geral de Controle Externo dos Serviços Essenciais ao Estado e das Regiões Sul e Centro Oeste, Secretaria de Métodos e Suporte ao Controle Externo, 2a Ed., 2018.
²Por óbvio essas não são as únicas funções presentes em um processo de contratação pública. Antes da elaboração do estudo preliminar, por exemplo, temos uma fase preparatória de planejamento, que naturalmente compete ao agente responsável pela elaboração desse estudo, que é consequência da própria ação de planejamento. Cite-se ainda os atos de solicitação da demanda via sistema de informação, a autuação e numeração do processo de contratação, o parecer jurídico, eventuais pareceres técnicos solicitados na fase de condução do certame e o ato de empenhamento da despesa oriunda do contrato a ser firmado, dentre outros.
³O princípio da segregação de funções é essencial ao cumprimento do disposto no art. 11 da Lei Federal n. 14.133/2021: “Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos: I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; II - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; III - evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; IV - incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável. Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”.
4No âmbito do poder executivo federal, o Decreto no 9.203, de 2017, define gestão de riscos como “processo de natureza per- manente, estabelecido, direcionado e monitorado pela alta administração, que contempla as atividades de identificar, avaliar e gerenciar potenciais eventos que possam afetar a organização, destinado a fornecer segurança razoável quanto à realização de seus objetivos”.
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